Amor e sexualidade nas tramas da ciência – e ao longo da história.

Assessoria de Comunicação da Universidade de Caxias do Sul - 02/03/2017 | Editado em 03/03/2017

Ao analisar as motivações românticas humanas, psicanálise e neurociência compartilham uma certeza: as crises de “sofrência” não são uma perfeita ilusão.

Vagner Espeiorin – vaespeio@ucs.br

A fila anda. Cleópatra, faraó do Egito, transformou sua vida amorosa em um trampolim para alcançar seus objetivos. Teve um filho com o imperador romano Júlio César, mas quis o destino que o governante fosse morto. Em seu lugar, assumiu Marco Antônio. Sedutora, Cléopatra conquistou também o novo imperador, ampliou seu reinado e se transformou em ícone da História. O amor pode ser isso: poder.

Diferente de Cleópatra, o arganaz-da-pradaria, um pequeno roedor que habita especialmente a América do Norte, não vê com bons olhos o avanço da fila. A espécie é conhecida por manter relacionamentos de longo prazo, uma raridade entre os mamíferos (menos de 5% das espécies são monogâmicas). Além de fiéis, os arganazes compartilham os cuidados com a prole. O amor pode ser isso: compromisso.

Milhares de anos após Cleópatra e em um contexto bem diferente das pradarias – mais especificamente no concreto das grandes cidades – o Tinder já conglomera mais de 100 milhões de perfis, mais de 10 milhões só no Brasil. O aplicativo utiliza georreferenciamento para apresentar prováveis pretendentes ao usuário. O match é o sinal de que ambos os internautas topam um papo ou até um encontro para além da virtualidade. O amor pode ser isso: curtição.

Poder, compromisso e curtição são algumas das faces de um sentimento muito desejado: o amor. Não se trata aqui da situação incondicional que pauta os contratos de vivência entre familiares, mas sim de sua forma mais próxima do compromisso entre parceiros. Os gregos o chamavam de Eros.

Consumo de relações

“A contemporaneidade trouxe a questão do amor. Como se, caso soubermos o que fazer na vida amorosa, saberemos como agir no mundo. Toda a expectativa de felicidade ficou concentrada no amor e no sexo”, explica a psicanalista Denise Maurano, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que esteve na UCS para a aula inaugural do curso de especialização em Psicologia Clínica: Abordagem Psicanalítica do Sujeito Contemporâneo.

Apesar de apresentado como condição para se estar bem-sucedido na vida, o amor esbarra nos problemas próprios desse tempo. “Há um consumo nas relações de amor e sexo, como se ser feliz fosse consumir objetos. Da mesma forma que se consomem coisas, se consomem relações amorosas. Tem-se aí uma falência. Nenhum objeto vai calar a ânsia do desejo”, adverte Denise.

Apesar disso, os tempos atuais exploram novas formatações no modo de se relacionar. As configurações familiares se diversificaram e os ‘contratos’ de relacionamento não são os mesmos. Há espaço para experimentações, mas algumas condições são permanentes.

“Há um movimento familiar que apela à proteção dos filhos e que clama por uma certa estabilidade para que isso aconteça. Faz sentido que isso exista, mas não existe só isso. A gente não se liga apenas para fazer filho ou família; a gente se liga porque é necessário. Ser humano é tão difícil que você precisa se amparar no outro”, define a especialista.

DE OUTRAS ÉPOCAS

A idealização do outro como objeto de felicidade é algo relativamente recente. Apenas no século XVIII o casamento passou a ser visto como uma relação pautada pelo amor. “Esse amor e sexualidade é algo da contemporaneidade. Na história da sexualidade, os casamentos se davam em torno da aliança. O que se fazia com a sexualidade só se falava nos confessionários”, comenta Denise Maurano.
Na contemporaneidade, o amor passa a ser um pacto de sexualidade, explica a psicanalista. Isso é um projeto atual, sustentado pelo amor romântico e que vem ganhando novos formatos. E como era em outros tempos?

Do tempo da pedra

Os homens caçavam e as mulheres cuidavam do abrigo. Essa divisão clássica tem sentido a partir do período neolítico, conhecido como Idade da Pedra Polida, quando o homem passou a domesticar animais e começou a monogamia. Antes, na Idade da Pedra Lascada, a poligamia era liberada. Liberal, por sinal, também era o comportamento da época. Pinturas rupestres indicam que nossos antepassados não eram nada comportados sexualmente.

Eros pra que te quero

Para os gregos, Afrodite era a deusa do amor, mas também da beleza e da sexualidade. Era a mãe de Eros, esse sim dedicado apenas às causas do amor. Conta a lenda que o jovem deus se casou com Psiquê, com quem teve Hedonê, a deusa do prazer. Amor, sexualidade e prazer formam, assim, uma dinastia na mitologia grega. No berço da democracia, a monogamia se efetivou. E essa premissa foi acompanhada por Roma. Porém, como bons legisladores, foram os romanos a perceber que nem tudo é para sempre: foi criado o divórcio. As regras, naquele tempo, eram rígidas e nada igualitárias. Traição era punível, mas apenas se a mulher cometesse o adultério.

É pecado!

Para definir o amor e o sexo na Idade Média, uma palavra é suficiente: proibido. Nem pensar em sexo era permitido. A prática era condicionada apenas à reprodução. Os casamentos eram arranjados e os noivos, em grande parte das vezes, sequer se conheciam. No período surge o cinto de castidade, que os senhores feudais podiam usar em suas esposas. Por ser um apetrecho pouco higiênico, muitas mulheres morriam vítimas de infecções. O amor cortês também data da Idade Média e estava ligado à idealização, especialmente da mulher. O termo ‘fazer a corte’ vem daí.

Liberal, mas nem tanto

Eram tempos menos rígidos, mas nem por isso houve grande liberação comportamental na Idade Moderna. A maior mudança ficou por conta dos casamentos. Com a Reforma Protestante, algumas religiões, como a Anglicana, passaram a permitir o divórcio. O amor – ah! – começou a despontar, e alguns casamentos já ocorriam por causa dele. O avanço da ciência trouxe conhecimentos relacionados à saúde sexual. O médico Gabriele Falloppio descobriu as trompas uterinas e criou o primeiro preservativo masculino, afinal, a sífilis se disseminava na Europa.

E agora?

O amor na contemporaneidade ganha sentido na idealização do outro, especialmente na lógica de que a felicidade se concentra na constituição de uma vida em comum com o ser desejado. A lógica do amor mergulha também na paixão. “A paixão focaliza um posicionamento que está aquém e além do amor. O sujeito habita definitivamente o outro, não a si mesmo. Mais do que preencher uma falta, a paixão é uma modalidade de entrega totalmente cega, em que o sujeito se perde”, explica Denise Maurano.

O problema é que, em tempos hedonistas, o sofrimento ‘deve’ ser descartado. “No consumismo contemporâneo, a ideia é virar a página. Ficar triste é brega”, observa. Na prática, porém, isso não dá certo. “Se você faz uma aposta de solução da vida pela via da paixão ou pela via do encontro amoroso, e isso se perde, tem um luto a ser feito. E luto implica numa despossessão dolorosa, porque você depositou naquela pessoa o seu patrimônio”, reflete.
Enfim, independentemente de época, amar é solução – ou também problema.

As substâncias do apego

Ocitocina. Compreender o amor nas suas bases biológicas depende muito desse neurotransmissor. Há décadas essa substância foi identificada por sua atividade hormonal, auxiliando nas contrações uterinas no parto e na liberação do leite materno, entre outras. Mas ela também contribui para relações de longo tempo. No sistema nervoso, a ocitocina age na criação de vínculo. E pode ser de qualquer tipo: entre amigos, pais e filhos e até entre humano e animais de estimação.

“Essa substância está envolvida em todo tipo de vínculo positivo, sendo um dos elementos essenciais para um relacionamento amoroso, romântico. Quando se olha nos olhos de alguém com quem se tem algum vínculo, o corpo libera ocitocina. É uma situação de retroalimentação, de reforço”, exemplifica o professor de Neurociência da UCS, Lucas Fürstenau de Oliveira.

Monogamia biológica

Recorda do arganaz-da-pradaria? Pela sua característica monogâmica, cientistas se dedicaram a estudar a espécie. Além de comprovar a ação da ocitocina, os pesquisadores perceberam que outra substância age no corpo quando falamos de amor: a vasopressina. Esse neurotransmissor, mais presente no macho, está relacionado à formação do território.

Especula-se que o casamento entre ocitocina e vasopressina seja o responsável pela constituição biológica do amor. Os dois neurotransmissores são tão íntimos que compartilham de uma casa em comum. Explicação: para qualquer substância agir no cérebro, ela precisa de um receptor nas células. Como as duas substâncias são muito parecidas, a ocitocina pode se ligar em um receptor de vasopressina, e a vasopressina pode se ligar em um receptor de ocitocina. “É difícil diferenciar quem está agindo e em qual receptor”, aponta o professor.

No arganaz-da-pradaria a vasopressina tem tanta força que determina a fidelidade entre os parceiros, tanto que se outro macho for atrás de uma fêmea que já tem par, vai dar briga. “Se tentar extrapolar para o lado masculino, seria a ideia de possessividade. Mas, por enquanto, isso só se observou no modelo animal”, alerta Oliveira.

Como e por que escolhemos

A psicologia evolucionista procura explicar comportamentos humanos a partir dos princípios de seleção natural e seleção sexual, conforme explica o professor Lucas Fürstenau de Oliveira. De acordo com esse campo do conhecimento, nossas escolhas amorosas se apresentam como resultantes de uma série de fatores orgânicos e de adaptação. Na década de 1990, um estudo transcultural sobre relacionamentos analisou respostas de 10 mil pessoas. O trabalho acabou embasando cientificamente alguns apontamentos do senso comum, mas também serviu para romper alguns estigmas.

Recursos financeiros, por exemplo, são considerados pouco importantes para a definição do par. As mulheres dão mais atenção a isso, porém, quanto mais igualitária a cultura, menos importância tem este fator. “É curioso, porque a gente fala de amor, mas essa característica (financeira) parece ter relevância”, afirma Oliveira.

A aparência costuma ter uma pontuação maior no homem escolhendo a mulher do que o contrário. Mais especificamente a imagem de jovialidade. Quanto mais estrogênio tiver a mulher, maiores ficam os olhos e mais delicados os traços – que são características juvenis – e também maiores os seios.

Cio Desonesto

Pode parecer brincadeira, mas não é. As escolhas de parceiro no longo prazo estão condicionadas ao cio desonesto. Diferentemente das outras espécies mamíferas, as mulheres não apresentam sinais externos do período reprodutivo. Por isso, para garantir a reprodução, desenvolveram-se características como mamas inchadas permanentemente e lábios carnudos. “Esse sistema é o que se chama de cio desonesto: a aparência de que a fêmea humana está constantemente no cio”, explica Oliveira, com base na psicologia evolucionista. “Com isso, o homem ficou perto para garantir que, havendo reprodução, a prole seria dele, investindo na criação do filho. Especula-se que passou a existir o amor a partir daí, para facilitar a convivência de longo prazo”, complementa.

E os feromônios?

As discussões em torno da influência dos feromônios na espécie humana são um tanto controversas, mas, indica o professor, eles agem sim sobre o comportamento humano. Pontualmente, essas substâncias funcionam para indicar algo, seja demarcação de território (caso da urina dos cachorros) ou até uma situação de perigo. Entre humanos, podem atuar na escolha de curto prazo, direcionada à reprodução. Como a ação da substância não é percebida conscientemente, a resposta comportamental nem sempre fica clara para o indivíduo.

Apoiado em pesquisas, o professor diz que muitas mulheres podem escolher parceiros a partir da distinção genética, tendendo a buscar aqueles com a menor compatibilidade possível. “A ideia é que, com menor semelhança genética, a criança tenha uma senha de sistema imunológico diferenciado”, esclarece.

Assim, conforme o professor, biologicamente quem escolhe é a mulher. Enquanto o homem é mais atraído pelas características influenciadas pelo estrogênio, a mulher deseja mais um sistema genético diferenciado do dela.

 

Reportagem publicada na revistaUCS – edição 22 – Jan/Fev 2017 – Leia mais.