Frei Betto: “Não dá para viver sem sonho, porque nós somos seres de sonhos”.

Assessoria de Comunicação da Universidade de Caxias do Sul - 25/08/2017 | Editado em 29/08/2017
Frei Betto palestrou na Universidade a convite do Instituto Religare de Estudos do Fenômeno Religioso, coordenado pelo professor Everaldo Cescon.

Frade dominicano e escritor analisou transição mundial para a pós-modernidade, discorreu sobre filosofia, religião, política e educação e defendeu modelo social de partilha dos bens da vida em palestra no UCS Teatro.

Frei Betto é um homem de convicções. Aos 73 anos, completados três dias após palestrar na UCS sobre A Mística Cristã e a Defesa da Vida, na terça, dia 22, elas seguem inabaláveis como eram aos 18, quando, em 1962, foi escolhido dirigente nacional da Juventude Estudantil Católica (JEC). E como foram mantidas ao longo de toda a trajetória religiosa, social e política – o que lhe garantiu, conforme costuma narrar, o complemento de força e serenidade necessário para enfrentar os quatro anos no cárcere, entre 1969 e 1973, quando foi preso pelo apoio, junto com outros frades dominicanos, ao grupo Ação Libertadora Nacional (ALN), que combatia o governo militar; e sustentou seu engajamento até alçá-lo à condição de ícone da esquerda latino-americana.

A mesma firmeza de posicionamento hoje – embora a derrocada do governo esquerdista no país – mantém sua perseverança em um modelo de sociedade que, ao mesmo tempo que defende a solidariedade e a inclusão dos pobres e necessitados, é implacável na crítica e rechaço à visão dos oponentes, colocados à direita do espectro político. Como é comum às convicções, pode-se concordar ou discordar parcial ou integralmente delas. Pode-se defendê-las ou detratá-las. Assim como ocorre com o pensamento de Frei Betto. O frade dominicano e escritor de 60 livros, contudo, apresenta, de saída, duas condições para o diálogo: primeiro, o interlocutor sabe que está diante de ideias fundamentadas – se certas ou erradas, o juízo pessoal pode relativizar. E, segundo, não passará impassível diante delas. Seja para apoiamento e admiração, seja para contestação ou repúdio.

Na palestra na UCS, a turbulência política, econômica, social e ambiental vivenciada em nível mundial na contemporaneidade, gerando “inquietação, impasses, crise de valores e dúvidas” e ilustrada, segundo Frei Betto, pela presença de “uma farmácia em cada esquina, em vez de livrarias”, foi o ponto de partida para a apresentação de suas convicções sobre a defesa da vida pela ótica cristã. Para o religioso, a conjuntura crítica denota um momento de ruptura histórica. “Estamos entrando em uma nova época, a pós-modernidade, e a grande pergunta que fica é qual será o paradigma que vai norteá-la”, anunciou.

Transição pós-moderna – Recordando que a predominância da religião, nos mil anos do período medieval, foi substituída pela da razão, com a perspectiva de que ciência e tecnologia proveriam a sociedade ocidental dos recursos para a evolução e a qualidade de vida, o palestrante introduziu a problemática do período. “O que aconteceu de errado, então, que metade dos 7,2 bilhões dos seres humanos hoje vive diariamente em função das necessidades biológicas imediatas?”, questionou, apresentando o que entende ser a resposta: “Aconteceu que a Modernidade foi atropelada pelo capitalismo. As conquistas existem, mas poucos têm acesso a elas por conta de um sistema onde o capital e sua acumulação privada têm mais importância do que os direitos humanos e a inclusão social”.

Esta realidade, segundo ele, direciona o advento da nova época histórica: “É falho dizer que vivemos em um mundo globalizado. O que existe é ‘globocolonização’: a imposição de um modelo de sociedade consumista, hedonista, exclusivista. Assim, tudo indica que paradigma da pós-modernidade será o mercado – a mercantilização de todos os aspectos da vida e da natureza”, considerou. De acordo com o frade, isso já acontece, na medida em que o valor social do indivíduo é conferido pelas mercadorias que ele é capaz de possuir e mostrar. “Sem ter consciência, estamos mercantilizando até as relações sociais. Que futuro tem uma humanidade onde cada vez há menos cidadania e mais consumismo?”, indagou.

Novo projeto civilizatório – Para Frei Betto, esta é uma distorção resultante da ‘desistorização do tempo’. “A grande conquista do pensamento ocidental é o reconhecimento do caráter histórico do tempo. Quando não temos essa percepção, tanto no social como na vida pessoal, é muito difícil abraçar projetos. E esse processo do neoliberalismo está esgarçando a temporalidade histórica”, acusou. A saída, segundo ele, é a implantação do que chama de ‘novo projeto civilizatório’ proposto por Jesus. “Me perguntam porque me meto em política. É porque sou discípulo de um prisioneiro político. Jesus morreu como vários companheiros meus durante da ditadura: foi preso, torturado, julgado por dois poderes políticos, o judaico e o romano, e condenado à pena de morte. E porque o assassinaram de modo tão cruel? Simples: vá você, no reino de César, anunciar o Reino de Deus”.

Assim, o novo projeto civilizatório é a aplicação, para Frei Betto, do Reino de Deus na Terra, conforme, justifica, orientado por Jesus na oração do Pai Nosso. “A Igreja colocou o Reino de Deus ‘lá em cima’, mas ele não está lá em cima. Está aqui, à frente. Na oração que Jesus nos ensinou está dito ‘Venha a nós o vosso reino’. Que venha aqui, nesse mundo, pela nossa militância, seguindo modelo de Jesus”, defendeu.

O alcance de tal contexto ocorre, conforme a leitura do Evangelho proposta pelo palestrante, com base em dois pilares: o amor a compaixão, nas relações pessoais (João, cap. IV); e a partilha dos bens, nas relações sociais (Marcos, Cap. VI). “Uma sociedade que não faz da diferença, divergência. Que aceita a diversidade de gêneros, de opiniões, democrática. Que não é exclusivista pelo preconceito, pela discriminação. Pelo contrário, o amor tudo incluiu, a compaixão tudo compreende. Este é o projeto de Jesus para nossas relações pessoais”, descreveu.

Milagre da partilha – Nas relações sociais, a explicação está na narrativa da distribuição de pães e peixes por Jesus à multidão constante na Bíblia. Na ocasião, de acordo com Frei Betto, não houve multiplicação – termo não constante no texto original, mas em intertítulos acrescentados em edições do livro – dos alimentos. “O sete, na Bíblia, presente em várias referências, significa infinito. Nesse caso, eram cinco pães e dois peixes, indicando que ali havia alimento para todos os 10 mil presentes. Me perguntam se eu nego o milagre. Não, eu nego a mágica”, justificou o religioso. “Não há, na Bíblia, a descrição de nenhum milagre de Jesus que seja de acréscimo material. Todos são de revitalização”, reforçou.

Assim, pregou Frei Betto, “o milagre da partilha” é a proposta de Jesus para a humanidade, cumprindo-se a ‘bem-aventurança da fome e da sede de justiça’ (Matheus, cap. XXV) e alcançando-se a libertação da pobreza e da opressão por meio do fenômeno religioso. “A oração que ele nos ensinou tem dois refrões: ‘Pai nosso’ e ‘pão nosso’. Só devo me sentir no direito de chamar Deus de ‘Pai nosso’ se me empenho para o que os bens da vida (simbolizados no pão, alimento mais universal que existe) sejam nossos, de todos, não só meus”, justificou.

Política, sociedade e educação

Na palestra no UCS Teatro, Frei Betto, a partir da abordagem sobre os princípios cristãos, discorreu e respondeu perguntas sobre temas que marcam sua atuação desde a juventude, como política, sociedade e educação. A seguir, a síntese do pensamento do frade dominicano e escritor sobre esses temas:

“Na minha geração, que tinha 20 anos nos anos 60, havia drogas e não havia drogados, porque éramos viciados em utopia. Estou cada vez mais convencido de que, quanto mais utopia, menos drogas; e quanto menos utopia, mais drogas. O que não dá é para viver sem sonho. Se o sonho não é histórico, utópico, ele será químico, porque nós somos seres de sonhos”

A crise de legitimidade democrática do país provoca fenômenos espantosos, como as manifestações de junho de 2013: milhares de pessoas nas ruas, nenhum discurso, nenhum partido, nenhuma reivindicação. Um enorme protesto sem nenhuma proposta. É daí, da sonegação da consciência histórica, que vem o caldo de cultura que favorece o nazifascismo”

“Sempre pensei que o poder muda as pessoas. Não muda; faz com que elas se revelem. Quem é prepotente, enquanto não tem poder, disfarça. Na hora que se sente por cima, os outros que saiam de baixo. Como diz um ditado espanhol, ‘Se queres conhecer a Juanito, dê-lhe um carguito’”

“Como dizia Paulo Freire, quando você muda de lugar social, você mudará de lugar epistêmico. Uma coisa é viver no mundo dos ricos, outra é viver no mundo dos pobres. A cabeça pensa onde os pés pisam”

“Quem tem nojo de política é governado por quem não tem”

“Não há ninguém que seja apolítico. Se é político por omissão, que é uma forma de se posicionar, ou por participação (para apoiar ou para mudar um sistema político)”

“Temos que voltar a organizar a esperança”

“Meu aforisma mais importante nos dias de hoje é: ‘Há que se guardar o pessimismo para dias melhores’”

“Desde a ditadura começou um processo de desmonte do ativismo político nas Universidades, fazendo com que esse conjunto de diferentes disciplinas com um projeto comum virasse uma ‘pluriversidade’, onde cada um toca seu instrumento e não há afinação. Essa fragmentação interessa a quem não quer que se pense a profissão como um projeto de cidadania, mas como um projeto de mercado”

“A escola, em qualquer instância, deve ser uma oficina política no sentido aristotélico, de formação de cidadania, de consciência crítica, de protagonistas cívicos. Para isso, a educação tem que despertar a nossa visão sobre os fatos, a diversidade hermenêutica (interpretação de teorias e da realidade)”

Instituto propõe espiritualidade para melhoria de práticas pessoais e relacionais

Com o intuito de abordar a espiritualidade cristã como meio para o engajamento em causas em prol da vida, a palestra com Frei Betto foi uma promoção do Instituto Religare, que reúne professores da Área do Conhecimento de Humanidades em torno de estudos do fenômeno religioso na UCS. A estrutura ainda é informal, mas sua oficialização está sendo encaminhada com aval da reitoria, segundo o diretor da área, Everaldo Cescon.

Como próximas atividades o grupo prepara, para o dia 23 de setembro, uma Jornada de Ciência e Espiritualidade “com a finalidade de compartilhar pesquisas que demonstram os benefícios da espiritualidade para a manutenção da saúde mental ou física”, informa Cescon. Também estão abertas inscrições para o curso de pós-graduação (em nível de especialização) em Inteligência Espiritual, que visa desenvolver capacidades relacionais como a escuta recíproca, o diálogo, o autocontrole e o trabalho em equipe para a melhoria de práticas pessoais e cidadãs.

Fotos: Claudia Velho