O desafio de formar professores-pesquisadores: entrevista com professor Francisco Catelli.

Assessoria de Comunicação da Universidade de Caxias do Sul - 13/10/2016 | Editado em 17/10/2016

“O professor não era, não é, nem nunca será, o detentor exclusivo do conhecimento. Essa premissa atravessa os tempos”.

Pcatelliara o professor Francisco Catelli, professor da graduação, do Programa de Pós-Graduação em Educação, e coordenador do Mestrado Profissional em Ensino de Ciências e Matemática, a universidade tem uma grande responsabilidade na formação de professores.

Há 36 anos na UCS, Catelli, que é físico, mestre em Engenharia de Minas, Metalúrgica e de Materiais pela UFRGS, e doutor em Educação pela Université Laval, do Canadá, tem como foco de atuação a pesquisa sobre o ensino de Ciências e incentiva seus alunos de graduação e pós-graduação a encararem com otimismo o desafio da docência. Nesta entrevista, ele apresenta algumas reflexões sobre os desafios do professor e coloca luz em algumas questões que estão no centro do debate sobre a educação em nosso país.

Quais os principais desafios enfrentados pelos professores da área de Ciências e Matemática no cotidiano das escolas? 

Possivelmente o maior desafio seja o de conviver com a imagem que o professor faz dele mesmo, imagem essa fortemente condicionada pela sociedade como um todo. Essa imagem, definitivamente, não é boa, e a tentativa de enumerar aqui as evidências dessa afirmação excederia o espaço dessa entrevista. Destacaremos duas, apenas.

Um elemento que contribui para essa (auto) imagem negativa é a visão que a sociedade, e por extensão, os professores (e alunos também) têm da ciência. Em vez dela ser vista como fruto do trabalho continuado e colaborativo dos pesquisadores, sob o aval de uma opção clara do Estado, ela é vista como obra de gênios. Pode parecer paradoxal, mas essa imagem acaba por afastar a grande maioria dos estudantes das carreiras ditas “exatas”: engenharias, física, química, matemática. Quantos de nós nos consideramos “gênios” em alguma dessas áreas? E é curioso constatar que essa visão das ciências atinge todas as escolas, indistintamente, desde as consideradas “boas” até aquelas que dispõem de menos recursos.

O outro elemento, também com ares de desafio, diz respeito ao acesso às tecnologias de informação e comunicação (tics). Frequentemente, o desafio implícito no uso dessas tecnologias é reduzido à sua mera disponibilidade nas escolas. Pensamos que o desafio é de outra ordem. As tics alteram, significativamente, o modo pelo qual nos apropriamos do mundo. E é claro que essa perspectiva inclui a escola: velhos (e maus) hábitos são cada vez menos tolerados, pelo menos pelos alunos – aulas exclusivamente expositivas, conteúdos que devem ser repetidos por eles nas avaliações, essas coisas. O advento das tics exacerba essa situação e, nesse sentido, mas não apenas nesse, o advento das tics é motivo de comemoração. Elas fazem parte da solução, não do problema. Nós, professores, precisamos entendê-las e explorá-las.

De que maneira a universidade, através do Programa de Licenciaturas, dos cursos de especialização, mestrado e doutorado, contribui para o avanço qualitativo e quantitativo do ensino de Ciências e Matemática?

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No Mestrado em Educação, o biólogo Michel Mendes tem a orientação do professor Catelli. Na relação entre os dois, além do aspecto didático-pedagógico, a afetividade, o respeito mútuo e o diálogo transparente são fundamentais para manter uma parceria que permanece ao longo do tempo.

O avanço qualitativo é inegável. Certamente a “dose” desse avanço precisa ser aumentada, mas trata-se de um processo, e como tal, é necessário ter paciência. Os elementos apresentados na pergunta anterior, e tantos outros não mencionados, são objeto de atenção em diversas disciplinas específicas para as licenciaturas. Nos mestrados, eles são elementos necessariamente presentes. Nenhuma dissertação no campo do ensino e da aprendizagem pode merecer esse nome se não considerar, em algum grau, questões como as abordadas acima e, via de regra, essas questões são cercadas da devida argumentação a partir de trabalhos e pesquisas já publicados. No caso dos doutorados, além da consulta exaustiva a essas fontes, há um processo de produção de uma resposta original a uma determinada questão.

Já o avanço quantitativo é pífio, não por culpa do Programa de Licenciaturas e dos demais programas da universidade, que, ao contrário, desempenham um papel simplesmente essencial na formação de professoras e professores. Eu diria, sem medo de exagerar, que esses programas são “um sopro de esperança” no enfrentamento dos desafios acima referidos, e de tantos outros. Para entender, claro, de modo apenas preliminar, porque esse avanço quantitativo é insuficiente, lembremo-nos que a instituição “escola” é um ente de múltiplas faces, e é reflexo, por exemplo, dos anseios da sociedade, das políticas públicas em âmbito federal, estadual e municipal, que refletem (ou não) esses anseios das comunidades de professores, dos alunos e suas famílias, enfim, a escola que temos é um reflexo da sociedade como um todo. Se a escola que temos não nos satisfaz, temos que agir em todas essas instâncias. Creio que os programas mencionados desempenham bem seu papel, dentro das condições dadas por esse contexto complexo.

Com 36 anos de experiência como professor universitário, o senhor acompanhou as várias mudanças no processo de ensino e aprendizagem. Qual foi a que mais o impactou? E o que é que ainda permanece, isto é, aquilo que não se modificou nesse tempo todo?

Essa pergunta é fácil de responder! Seguramente, o advento das tics, que mencionávamos acima. Por quê? Pense num equipamento de laboratório (voltado ao ensino e à aprendizagem), uma balança, por exemplo. Ela pode ser empregada de modo frutífero em diferentes situações, mas há restrições e limites para seu uso. Já um computador ou um smartphone quebram essa barreira. Além de permitir formas potentes de comunicação entre pessoas (o que, segundo teorias recentes, é a essência da ciência) esses dispositivos podem ser associados a praticamente todos os outros dispositivos de laboratório. Computadores e assemelhados não são “equipamentos” de laboratório, apenas; eles potencializam a comunicação entre os diversos atores do processo de ensino e aprendizagem, mas não só isso. Precisamos, nós professores, entender melhor esses recursos digitais.

Eu destacaria um aspecto que, me parece, não apenas não se modificou, mas, ao contrário, se consolidou ao longo dessas quase quatro décadas de contato com estudantes e com a escola. O conhecimento é sempre a resposta a uma pergunta. E se essa pergunta é intrínseca, ou seja, se ela parte do próprio aprendiz, então esse conhecimento adquirido será impregnado de significado.

educacaoSe as tics “atrapalham” esse processo de perguntar (e responder)? Muito pelo contrário! Se antes, aulas exclusivamente expositivas não funcionavam por não responderem a nenhuma pergunta autêntica feita pelos estudantes, por eles mesmos, hoje elas não funcionam pela mesma razão. E não funcionarão, mesmo que sejam mediadas por recursos modernos e sofisticados. Se a comunicação se dá apenas do professor para o aluno, não há tic que dê jeito nisso. Muitos atores participam desse processo comunicativo: professor-aluno, e o inverso, aluno-aluno, aluno-meio social, aluno-biblioteca (digital ou “de papel”) enfim, a combinação de relações entre esses múltiplos atores é longa.

O professor não era, não é, nem nunca será, o detentor exclusivo do conhecimento, aquele que o “ministrará”, gradualmente, e segundo um roteiro rígido e pré-estabelecido, aos seus alunos. Essa premissa atravessa os tempos.

Ser um bom professor depende de vocação ou de uma formação sólida e continuada?

Se concebermos a entidade “Escola” como esboçado brevemente acima, ser um bom professor é antes de tudo um processo, longo e gradual, e é sempre um projeto inconcluso. Não vejo pessimismo nessa afirmação, ao contrário. Isso acontece em outros campos da atividade humana. Um músico, por exemplo, pode dizer que, em algum momento, atingiu a competência plena para fazer aquilo a que ele se propôs no campo da música? E, há algo mais estimulante e desafiante do que uma tarefa que, ao mesmo tempo em que se deixa conquistar, dia após dia, nos escapa, dia após dia?

Sim, ser professor depende da vocação. Mas depende também de uma formação e, e se for inicialmente sólida, tanto melhor. Mas essa formação não cessa, nunca. Entretanto, há mais, muito mais. Precisamos entender melhor nosso campo de trabalho, a escola, não apenas o espaço físico, mas os diversos atores que nela orbitam. Nela, há elementos do passado, da história da humanidade, mas há também elementos da história recente, de um ponto de vista global, e também de um ponto de vista local. Há elementos do futuro: qual escola queremos? A escola que temos (e a que teremos) é fruto de uma política, não apenas educacional. Ignorar essas coisas (e tantas outras não mencionadas aqui) é fazer o nosso trabalho de professora ou professor em cima do vazio, é construir uma casa com alicerces frágeis. A ciência é um produto social; a escola, também. Não podemos, nós que queremos ser bons professores de ciências e matemática, perder isso de vista.

Fotos: Claudia Velho e Daniela Schiavo.