Os Brunos em Segalla: escultor retratou a fé e a maternidade.

Assessoria de Comunicação da Universidade de Caxias do Sul - 18/10/2016 | Editado em 19/10/2016

Instituto que preserva a obra do escultor caxiense, cuja morte completou 15 anos em agosto, está abrigado no Centro de Artes e Arquitetura da Universidade

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Bruno Segalla na Câmara de Vereadores. Artista também foi político e líder sindical.
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Réplica do Jesus Terceiro Milênio. Escultura ganhou monumento nos Parque de Eventos da Festa da Uva.

Feito de argamassa armada, Jesus medita do alto de seus 27 metros, diante da cidade praticamente por inteira. Apesar da 1,5 tonelada e da rigidez do concreto, o semblante do messias transmite serenidade e pouco lembra o sofrimento que foi submetido à cruz – figura mais comum em altares e outros espaços religiosos.
Em 1991, quando foi criada a imagem que daria origem ao monumento que fica junto aos Pavilhões da Festa da Uva, Bruno Segalla estava perto de completar 70 anos. Da vida agitada na arte e no trabalho, é possível que o escultor – paradoxalmente – projetasse sobre a obra um desejo perturbador para quem havia se dedicado à incansável luta política durante a ditadura militar (1964-1985): a busca pela tranquilidade. Como na construção que seria erguida em 2004, as oposições permeiam a obra do artista caxiense, cuja morte completou 15 anos em agosto.
Monumento mais visível da cidade, o Jesus Terceiro Milênio foi criado por um ateu considerado comunista. Os traços contemplativos destoam de grande parte da obra do autor, baseado em um tracejado mais rústico – menos preciso e leve. Segalla, porém, deu ao Cristo as características humanas presentes em praticamente todos os seus trabalhos.
“Não é possível enquadrar a obra do Bruno Segalla em uma única linha. De um modo geral, seus trabalhos são conduzidos pelo expressionismo”, contextualiza a professora do curso de Artes Visuais da UCS, Sinara Boone. Nessa corrente, os sentimentos e as experiências de vida do artista andam lado a lado com a técnica de produção da arte.

DOS IDEAIS À EXPRESSÃO
E não falta vida nas criações de Segalla. Seja a expressão da própria ou das de quem compartilhou momentos, angústias ou desejos. Há vida na representação da grávida, no encontro de casais, na mãe que carrega os filhos, na mulher que amamenta, no homem que empunha o metal.
“Direitos humanos e a representação feminina são temas presentes na obra do escultor. Do ponto de vista da técnica, seus trabalhos não se caracterizam pela busca da beleza do traço”, considera Sinara.

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Na imagem ao centro, professora Sinara Boone no Instituto Bruno Segalla, onde atua na coordenação pedagógica.

Pelo contrário, a força de suas criações é conduzida pela rigidez com que trabalha o metal, pela agressividade que traça a fisionomia de grande parte de seus personagens, pelas cenas que representa. “Percebo, em muitas criações, a ideia de que um carrega o outro. O elemento social está presente aí. Como na sociedade, dependemos uns dos outros”, reflete a professora.
A distorção das proporções pode ser explicada pelas influências cubistas. Considerada uma das escolas mais importantes do século XX, o Cubismo inverteu a lógica de representação. A partir dele, os artistas deixaram a busca pela perfeição na retratação de imagens realistas.
Nessa perspectiva, muitas esculturas de Segalla projetam-se pela valorização de aspectos que reforçam determinadas mensagens artísticas. Ao representar homens e mulheres trabalhadores, o artista dá dimensões mais amplas às mãos e aos pés – partes do corpo responsáveis pela técnica. Nas grávidas, a expansão do ventre retoma a ideia da responsabilidade, e a condição que a própria mãe guarda sobre seu filho.

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Na entrada do Instituto, escultura reflete sobre a maternidade

DA OBRA À VIDA

A maternidade cerca as criações de Bruno Segalla. Numa conversa com a arte abstrata, a representação da mãe que amamenta o filho ganhou o centro de Caxias do Sul. Encravada na Praça Dante Alighieri, a estátua “Instinto Primeiro”, em homenagem a Gigia Bandera, traz uma diferença considerável em relação às demais construções do escultor. De formas lisas e traços arredondados, sem braços e sem cabeça, a mãe se conecta à criança pelo seio. Surreal, mas com um sentido precioso: para um recém-nascido, o seio da mãe é a ligação mais forte com o mundo – que permite a ele a condição da vida.
O universo feminino e a maternidade são presentes na obra de Segalla como foram importantes em sua própria vida. O pai do escultor abandonou a família na década de 1930. Restou à mãe, Maria Panarotto, a condição de mulher solteira numa época em que esposas abandonadas não eram bem-vistas socialmente. Para garantir o sustento dos quatro filhos, Maria saiu ao mundo em busca de uma profissão. Tornou-se parteira. Era chamada, muitas vezes à noite, para ajudar a trazer à vida muitos bebês em Caxias. Não raro, precisava levar os próprios filhos a tiracolo, entre eles Bruno. Nesse contexto, a imaginação do pequeno deu origem, na vida adulta, à representação de gestantes parindo ou contemplativas.

DA ARTE À POLÍTICA

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Réplica da obra “Instinto Primeiro”. Monumento está localizado na Praça Dante Alighieri.

A mulher se transformou em matéria-prima para o conteúdo artístico de Segalla. Na vida, uma o acompanhou: a esposa Almira. Ela cuidava da família enquanto Bruno trabalhava ou se envolvia na militância política. “Éramos uma família de cinco irmãos. A mãe cuidava da ordem da casa e da educação dos filhos. Meu pai ficava mais preocupado com as questões políticas da época”, recorda Bruno Segalla Filho, que herdou do pai o gosto pelas esculturas.
A política entrou na vida de Segalla pelo trabalho, quando atuava no setor metalmecânico na Metalúrgica Abramo Eberle. Nesse ambiente aprendeu a lidar com o cobre e bronze, materiais que dariam forma a muitas de suas obras. E também ali despontou sua liderança comunitária. Chegou à presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de Caxias do Sul. “O pai se orgulhava de ter comandado a primeira greve de Caxias do Sul”, comenta o filho, sobre o simbolismo em parar as atividades na principal empresa da cidade.
A atividade política, no entanto, rendeu muitos percalços. Apoiador de Leonel Brizola, Segalla lutou em defesa da legalidade, após a renúncia do presidente Jânio Quadros, em 1961, e foi opositor da ditadura militar. Durante o período repressivo, o artista foi preso em dois momentos. Em 1964, houve o rompimento com seu projeto político. Sindicalista, precisou deixar a atuação de lado. Suplente do parlamento estadual, teve esta condição cassada. Na segunda vez que se encontrou na prisão, sofreu tortura psicológica. Levado a Porto Alegre, foi colocado em uma solitária onde passou dias e noites isolado, com a luz da cela sempre acesa.
Apesar das dificuldades, a luta política também construiu amizades, como a que manteve com o deputado federal Nadir Rossetti. No âmbito da militância, aproximou-se de Brizola após a Anistia de 1979. “Lembro de termos recebido Luis Carlos Prestes em nossa casa. Acho que foi em 1984. Uma noite inesquecível para o pai”, recorda Bruno Segalla Filho.

 

DO ALFINETE AO BUSTO

Nas esculturas, Segalla imprimiu vivências em cada uma de suas criações. O foco na arte se deu com mais força após deixar o trabalho na metalurgia para se dedicar ao atelier. Sua popularidade, porém, já era grande graças à produção de medalhas, bustos e placas comemorativas. Assim como na política, a porta de entrada para esse mundo de criação foi a própria Metalúrgica Eberle.
Em Caxias do Sul, há esculturas de diferentes personalidades em pontos conhecidos da cidade. No Largo da Igreja São Pelegrino, a estátua do Padre Giordani foi criada por Segalla, assim como a de Anna Rech, no bairro ao qual ela deu nome. Em Porto Alegre, a sede da Assembleia Legislativa conta com um busto de Bento Gonçalves que faz alusão ao vento minuano, ideia resultante da total liberdade conferida ao artista para a produção.

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Se os bustos destacam-se pela imponência, as efígies em cabeças de alfinete se impõem pela dificuldade de execução – Segalla era um dos poucos que dominava a técnica. Trabalho minucioso que só pode ser feito – e visto – por microscópio. Getúlio Vargas, Ayrton Senna e Eva Perón foram algumas das personalidades esculpidas dessa forma pelo escultor.
No Instituto Bruno Segalla, abrigado no Centro de Artes e Arquitetura da UCS, produções nos alfinetes chamam a atenção dos visitantes. Além de esculpir, Segalla também gravava dizeres de até 135 letras na pequena peça. Em uma delas, há trechos do ‘Pai Nosso’.
Em nome da mãe, o escultor deu origem a obras que, assim como contrastam com a cultura local, conseguem dialogar com os valores caxienses – ao ponto de, ateu e comunista, ter tornado o monumento Jesus Terceiro Milênio um símbolo da cidade. Sinal de que muitos ‘Brunos’ coexistiam em Segalla.

 

finaltecnicaA TÉCNICA
Atualmente, o IBS abriga a exposição Terra, Fogo e Metal, com curadoria do artista plástico uruguaio Luis Mario Cladera. Mais do que uma perspectiva artística sobre as criações de Segalla, a mostra dá visibilidade aos processos técnicos do escultor. Modelagem, cunhagem e fundição são demonstradas por meio de moldes, chapas e ferramentas utilizadas pelo artista.
Para criar muitas de suas peças, Segalla desenvolvia um protótipo em arame que servia de base. Com gesso, o escultor dava contornos, fisionomia e detalhes à criação, em seguida revestida por um material resistente a altas temperaturas e colocada em um molde, no qual era injetado cobre em estado. Incapaz de derreter o revestimento, o metal se acomodava no espaço antes preenchido pelo gesso. Com o cobre resfriado, o molde era retirado e a peça terminava de ser esculpida e polida para, enfim, ser banhada em bronze.

O INSTITUTO
Localizado no Centro de Artes e Arquitetura, junto ao Campus 8 da UCS, o Instituto Bruno Segalla (IBS) abriga o acervo do escultor caxiense e realiza periodicamente exposições com obras do artista. Além das visitações abertas à comunidade, o espaço combina ações educativas focadas especialmente no público de escolas. Conforme explica a professora Sinara Boone, que faz a coordenação pedagógica do IBS, as atividades buscam promover a inclusão cultural das crianças e adolescentes, estimulando os sentidos de identidade e pertencimento junto às novas gerações de caxienses.
Além das esculturas, medalhas e placas, o instituto abriga réplicas de bustos e estátuas produzidas por Segalla, encontrados em diferentes espaços públicos. #dica: vale uma visita.

Publicado na RevistaUCS, edição agosto-setembro de 2016 | Texto: Vagner Espeiorin | Fotos: Claudia Velho