Bullying: por que tanta intolerância?

Assessoria de Comunicação da Universidade de Caxias do Sul - 06/07/2016 | Editado em 06/07/2016

Nas escolas, a falta de habilidade para lidar com diferenças pode se transformar em motivação para uma violência intencional e repetida. Na sociedade, da convivência às redes sociais, o passo é muito curto para a hostilização do outro. Afinal, por que nos tornamos tão intolerantes?

Em outubro de 2007, um norte-americano de 13 anos cometeu suicídio após sofrer, sistematicamente, agressões na escola que frequentava em Essex Junction, no estado de Vermont. Em 2013, na saída da aula, uma aluna de 12 anos foi agredida por cinco meninas enquanto era chamada de “gorda”. A cena, que aconteceu em Piracicaba, no interior paulista, ficou marcada na memória da adolescente, mas foi também armazenada em vídeo pelas próprias agressoras.

Apesar das diferenças de tempo e espaço, ambos casos se enquadram no conceito de bullying. De origem inglesa, o termo deriva de ‘bully‘, que tem em ‘valentão’ uma tradução próxima e designa uma prática perversa que encontra espaço especialmente no ambiente escolar, mas não exclusivamente nele.
“O bullying tem a característica de ser consciente, sistemático e repetitivo”, explica a professora do curso de Psicologia da UCS Raquel Furtado Conte. A agressão pode se dar de forma física ou psicológica e não apresenta motivação aparente, mas gera impactos marcantes sobre o agredido – e até mesmo para o agressor.

Como toda forma de violência, analisa a especialista, ele se projeta como uma relação de poder. A diferença se estabelece nos personagens que a reproduzem. Eles não estão em hierarquias distintas. “Em geral, o bullying acontece entre pares de colegas”, afirma Raquel.

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O agressor projeta seu poder contra alguém e, não raro, lidera um determinado grupo em torno da ação. Se a lógica de poder não se estabelece pelos papéis de cada indivíduo, ela se dá no âmbito da personalidade dos envolvidos. E aí está o desequilíbrio de forças.

“O autor costuma apresentar traços como expansividade, arrogância, prepotência, onipotência, agressividade. As vítimas, geralmente são mais submissas, têm autoestima mais baixa e uma autoimagem negativa. Submetem-se muitas vezes esperando aprovação do grupo”, avalia a professora.

Repetição e intencionalidade são aspectos indissociáveis do bullying, mas não únicos. Estudos acadêmicos apontam que a baixa autoestima da vítima contribui para uma compactuação velada com o agressor, revelando-se uma concordância entre a autoimagem de quem sofre a violência e o pensamento de quem a pratica. Essa relação inviabiliza uma reação da vítima. Nesse jogo cruel, porém, há mais personagens.

O papel de espectador

Viralizou pela Internet, em 2011, um vídeo em que um garoto australiano era hostilizado por colegas na escola. Com 16 anos, Casey Heynes não esboçava reação diante de um rapaz que o provocava com ameaças e socos. Contrariando as expectativas, porém, o jovem revidou agredindo o autor das provocações diante de outros estudantes no pátio da escola.

As imagens espalharam-se pelo mundo, foram tema de debates televisivos e fomentaram a discussão sobre o bullying. Chama a atenção, porém, que o grupo de espectadores visualizava a cena sem apartar o conflito, e muitas vezes estimulando a ação agressiva – à qual tem o público como parte essencial, já que ele alimenta a ‘valentia’ do autor.

“Com o passar dos anos, temos perdido as referências e a ordem social. O ser humano se sente mais compelido a agir segundo seus próprios impulsos e estamos esquecendo a noção e a fronteira do certo e do errado; daquilo que é possível ou não. O sujeito tem fracassado em sua tarefa de adiar suas necessidades e emoções, de aprimorar suas táticas para lidar com elas”, considera a psicóloga.

Nesse estado irracional, a multidão projeta um discurso violento em que a discriminação e o ataque ao diferente se tornam parte de um cotidiano social conflituoso. “O bullying está focado no indivíduo justamente porque os princípios que o motivam estão no cotidiano social. Ele é uma manifestação individual de um fenômeno coletivo”, diz o antropólogo e professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da UCS, Rafael José dos Santos.

No ambiente escolar, no seio da sociedade ou em espaços digitais – o cyberbullying é um exemplo de violência sistemática na Internet – as práticas de agressão se retroalimentam numa realidade cada vez mais caótica.

Para Rafael, as redes sociais potencializam as formas de violência não por serem redes tecnológicas, mas por serem, antes de mais nada, sociais. Em sua amplitude e alcance, dão maior visibilidade às manifestações de violência. Apesar disso, elas também se constituem em espaços de combate às discriminações. Num jogo de conflitos gerais e consensos parciais que não permite enxergar com clareza as angústias e as necessidades do outro.

A violência que se prolifera

“Hoje, sem dúvida, enfrentamos a violência de todas as ordens na sociedade. Não só com o bullying, como um fenômeno da decadência da ordem e aumento do caos social. Estamos numa cultura da impunidade, numa cultura da violência, em que o sujeito não tolera as diferenças, a frustração”, analisa Raquel Conte.

A proliferação de pesquisas em relação ao bullying têm ajudado a demonstrar o potencial de agressividade de um ser sobre o outro. Se na infância, as agressões repetidas e intencionais se dão no âmbito físico, na medida em que se avança em idade se modificam as formas de poder. Exemplo disso são as estratégias de exclusão dos adolescentes, capazes de planejar consequências mais subjetivas.

Do concreto ao abstrato, a violência identificada no bullying pode ser percebida em toda a sociedade, nas hostilizações às minorias ou a comportamentos que fogem da lógica padrão. Do preconceito à discriminação, a linha é muito tênue.

“O preconceito é algo subjetivo, mas a partir do momento em que ele se materializa em ação, temos a discriminação. Esse processo está relacionado à incapacidade social de conviver com as diferenças, com o desconhecido, que pode dizer respeito a gênero, cor de pele, religiosidade, posição política, estilo de vida, enfim, tudo que escapa ao quadro de referências que uma pessoa tem e que lhe dá uma sensação de conforto. O diferente nos desacomoda”, define o professor Rafael dos Santos.

É o que se percebe, por exemplo, na tensão oriunda do contexto político brasileiro. Da dimensão social os conflitos passaram a permear as relações pessoais, gerando estigmas em torno de preferências ideológicas. Apelidos pejorativos para definir posicionamentos e pessoas se tornaram comuns e fomentam uma inter-relação preconceituosa. Nas redes sociais, fóruns de comentários se transformam em ringues de discussão. MemClaudia Velho-6392es e notícias – forjadas, inclusive – camuflam intencionalidades violentas. Enquanto muitos entram no conflito, parcela significativa observa essa dinâmica caótica, mas com pouco a fazer para diminuir o atrito da rivalidade.

“As posições antagônicas resultam de polarizações que, no limite, são os extremos dos posicionamentos político-ideológicos das diferentes classes e frações de classes sociais. Entre os polos antagônicos há gradações, mas elas têm pouca visibilidade no cenário de embates”, alerta Rafael.

Criminalização e educação

Fugir da lógica de espectador da violência para a de protagonista da diversidade, porém, exige uma mudança de mentalidade. O antropólogo elenca, ainda, esforços nos campos jurídico e educacional como possibilidades para um caminho de maior tolerância às diferenças.

Na ordem jurídica, aponta Rafael, deve-se trabalhar na perspectiva da criminalização das ações de discriminação e, claro, de violência. O caráter educacional consiste em promover a discussão e o trabalho efetivos sobre questões de discriminação e intolerância nas salas de aula.

Medidas para amenizar as formas de violência são indispensáveis para o convívio social e a saúde individual. No caso do bullying, a vítima pode ter uma baixa de rendimento no trabalho ou na escola, desmotivar-se a ir ao local onde sofre a violência e tender a se tornar agressor. O autor não passa imune, podendo se tornar mais agressivo e cometer atos mais delituosos. “Ele tem dificuldades em lidar com relacionamentos, tem problemas com poder e em relação ao respeito ao outro”, observa Raquel, deixando o entendimento de que violência só gera mais violência, independente da forma como se manifesta.

Publicado na RevistaUCS, edição maio-junho de 2016. | Texto: Vagner Espeiorin. Fotos: Claudia Velho.