No tribunal da opinião pública

OS HOLOFOTES MIDIÁTICOS SOBRE O CASO BERNARDO OPORTUNIZAM DEBATE SOBRE A INFLUÊNCIA DA IMPRENSA NAS DECISÕES JURÍDICAS E NA ATUAÇÃO DA POLÍCIA

Por VAGNER ESPEIORIN | vaspeio@ucs.br

Entrevistas coletivas dia sim, outro também. Coberturas minuto a minuto na internet e ampla repercussão no rádio, na televisão e no jornal. Três Passos, ao norte do Estado, ganhou o centro da atenção do público. O motivo: Bernardo.

Com apenas 11 anos, o corpo de Bernardo Uglione Boldrini foi encontrado no dia 14 de abril, enterrado em um matagal na cidade de Frederico Westphalen, distante 80km de Três Passos. As principais suspeitas do homicídio recaem sobre o pai da criança, o médico Leandro Boldrini, a madrasta do menino, a enfermeira Graciele Ugulini, e a amiga do casal e assistente social Edelvânia Wirganovicz. O caso chocou o público e mobilizou a imprensa em busca de informações sobre a morte do garoto.

O caso Bernardo ilustra uma situação que tem se tornado comum: as grandes coberturas jornalísticas de tragédias. Foi assim com o incêndio da Boate Kiss, quando 242 jovens morreram após uma casa noturna em Santa Maria pegar fogo. Igualmente noticiado, o Caso Eliza Samudio ganhou a atenção do país e do mundo pelo desaparecimento da modelo que namorava o goleiro do Flamengo, Bruno Fernandes de Souza. O jogador foi condenado como um dos autores do crime.

Além de ganharem os noticiários, esses casos foram acompanhados de perto por Jader Marques, advogado criminalista que faz a defesa do pai de Bernardo, Leandro Boldrini, representa o sócio-proprietário da Boate Kiss, Elissandro Spohr, e ajudou na acusação de Bruno. Marques esteve na Universidade de Caxias do Sul em maio para palestrar aos alunos do curso de Direito. No debate, um tema com que convive no seu dia a dia: processo penal e imprensa.

Jader Marques, advogado criminalista
UM PALCO TRANSFORMADO EM JÚRI

Voz potente para um UCS Teatro lotado. Em qualquer sinal de distração, batidas fortes do pé na madeira do palco faziam com que o público retornasse o foco para ele. Mas, Jader Marques não precisou recorrer ao artifício muitas vezes. O assunto atrativo bastou, somado ao excesso de gestos, para que os acadêmicos - normalmente apaixonados por direito penal - mantivessem os olhares atentos. Falou das influências da imprensa no processo penal e da importância que instituições como Ministério Público e Polícia Civil atribuem aos noticiários. Questionou os programas sensacionalistas da tevê. Não poupou críticas.

"Se a autoridade policial não tomar cuidado de preservar o inquérito, corre o risco do interesse midiático se sobrepor à busca da prova, à elucidação dos fatos. Isso é muito perigoso", disse Marques na UCS.

A preocupação do advogado não se dá apenas por defender o principal suspeito de cometer um crime que chocou o país. Tem relação com alguns institutos jurídicos que alicerçam a democracia: a ampla garantia de defesa e o direito ao contraditório - sem eles, viveríamos numa ditadura. Mas assim como essas garantias se baseiam em princípios constitucionais, a liberdade de expressão também. E é justamente aí que surgem jornais, rádios e emissoras de televisão com seu potencial noticiador.

O criminalista depara-se diariamente com a influência da imprensa. Exceto pelo Caso Eliza Samudio, em que foi acusação, o criminalista está sempre no lado contrário à opinião pública. Na época da Boate Kiss, aparecia quase que diariamente na televisão. Mais recentemente, ele respondeu pelo Facebook uma crônica do escritor Fabrício Carpinejar. No jornal Zero Hora, Carpinejar escreveu um texto para Leandro Boldrini: "Você nem pai foi. Nem homem foi. Você foi o que restou". Marques retrucou pelo seu cliente: "Fabricio sujou de sangue as mãos de Leandro, antes de a própria Polícia fazer qualquer afirmação".

EMOÇÃO X RACIONALIDADE: ENTRE A TÉCNICA E O PÚBLICO

Por trás do debate travado entre os dois está o confronto entre a emoção - estampada nas palavras de Carpinejar - e a racionalidade no discurso de Marques, afinal, só há criminalização após o julgamento. Parecem ser esses os aspectos que envolvem as grandes coberturas jornalísticas. De um lado, a opinião pública alimentada pelas notícias. De outro a defesa dos suspeitos, quase sempre acuada.

"Os fatos de grande impacto emocional são comuns na imprensa. As coberturas acabam ganhando essa dimensão porque nós, humanos, somos movidos pela emoção", explica a professora do Centro de Ciências da Comunicação e do Mestrado em Turismo, Maria Luiza Cardinale Baptista.

E a emoção tomou os jornais ainda no século XIX. Foi na França que notícias colocadas nos rodapés passaram a fazer sucesso. Casos familiares, tragédias e fatos relacionados às pessoas começaram a atrair a atenção do público. Em substituição às páginas oficiosas, os textos fizeram sucesso e até mesmo deram algum retorno financeiro a jornais que viviam num período de crise e conviviam com um população quase que totalmente analfabeta. Desde aquela época, a notícias se transformaram em produto. "Se a imprensa é uma indústria, a notícia é o seu produto. Eu parto da ideia que a informação é também um bem simbólico", afirma Maria Luiza, que coordena o grupo de pesquisa Amorcom (Comunicação, Amorosidade e Autopoiese).

"SE A AUTORIDADE POLICIAL NÃO TOMAR CUIDADO DE PRESERVAR O INQUÉRITO, CORRE O RISCO DO INTERESSE MIDIÁTICO SE SOBREPOR À BUSCA DA PROVA, À ELUCIDAÇÃO DOS FATOS. ISSO É MUITO PERIGOSO", DISSE MARQUES, ADVOGADO DO PAI DE BERNARDO

Além disso, a informação tornou-se poder. Empoderada, a mídia tem uma capacidade mobilizante. Ela trabalha em paralelo com outras instituições e, por vezes, influencia a atuação delas. "O jornalismo ocupa um espaço que é alternativa de jurisdição. Ele tem posicionamentos que interferem não só no público, mas na opinião de pessoas que diretamente estão envolvidas nas decisões técnicas", analisa Maria Luiza.

A pesquisadora da UCS alerta para alguns cuidados que envolvem a crítica e que costumam generalizar a atuação profissional: "A comunicação social tem sido o bode expiatório de uma sociedade em que tudo está em crise. Parece que o problema social se resolve criticando a mídia".

Noticiar com ética e respeitar a história das pessoas são elementos básicos de uma cobertura jornalística. Ambas características podem guiar a apuração das informações e o modo como elas são levadas ao público. Apesar disso, a relação entre imprensa e direito está longe do consenso. Seja no campo jurídico ou na Mídia, por enquanto só há um veredicto: a opinião pública, cada dia mais, dita as regras.



Revista UCS - É uma publicação mensal da Universidade de Caxias do Sul que tem como objetivo discutir tópicos contemporâneos que respondam aos anseios da comunidade por conhecimento.

O texto acima está publicado na décima segunda edição da Revista UCS que já está sendo distribuída nos campi e núcleos.

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