HERDEIRA

DO LEGADO

LITERÁRIO


MARÍA KODAMA, QUE FOI COMPANHEIRA DO ESCRITOR JORGE LUIS BORGES, PERSISTE NA MISSÃO DE DIFUNDIR A OBRA DO ESCRITOR ARGENTINO

POR VAGNER ESPEIORIN | vaespeio@ucs.br

Seja pelo cabelo parcialmente branco, parcialmente escuro, María Kodama pode ser percebida de longe. O semblante tranquilamente simpático anuncia que, sim, é permitido perguntar à vontade sobre o tema de interesse da maioria dos que assistiram à sua palestra de encerramento do II Seminário Internacional de Língua, Literatura e Processos Culturais (SILLPRO) na UCS: Jorge Luis Borges, seu falecido marido.

Famosa por sua intimidade com um dos escritores latino-americanos mais célebres, María Kodama palestrou na Universidade de Caxias do Sul, em 21 de maio. A viúva de Borges desembarcou em Caxias após partir de Tel-Aviv, com escala em Frankfurt e Rio de Janeiro, até chegar a Porto Alegre e, finalmente, à UCS. Após tantas milhas, os olhos puxados de Kodama - herança do pai japonês - pareciam ainda mais fechados, mas não menos sagazes. Na cidade israelense, Kodama divulgou a obra de Borges. Tarefa que assumiu após a morte do autor, em 1986. Professora e tradutora, ela responde por todos os direitos autorais do ex-marido. Mesmo com o trajeto longo e cansativo, Kodama falou ao público presente no UCS Teatro ao estilo de uma conversa. O tema do encontro acadêmico era o espaço e cenários de alguns contos do autor. Kodama preferiu responder aos questionamentos da plateia. Deixou algumas oportunidades para que todos conhecessem Borges de um lugar mais próximo.

"Borges era sensível e tímido, mas não deixava de ser comunicativo. Dizia que sem livros, não poderia imaginar a própria vida", recorda. A colocação da viúva procede. A infância do argentino foi cercada por brochuras. O pai, advogado, tinha uma grande biblioteca particular. Mais velho, o célebre escritor se tornou diretor da Biblioteca Nacional da República Argentina. Foi num mundo de livros - onde a imaginação é matéria principal - que Borges foi criado. Não por acaso, ele se tornou um ícone do realismo fantástico, estilo marcado por agregar ao cotidiano, fatos mágicos como se fossem naturais.

Kodama e Borges se conheceram na faculdade. Ela foi aluna do mestre da escrita durante a graduação na Universidade de Buenos Aires, onde ele lecionou por um bom tempo. "Não sabia se havia me aprovado porque eu sabia (o conteúdo), ou porque me queria", brinca ela.

No intervalo entre as posições de aluna e mulher, surgiu a função de secretária literária. Durante os últimos anos de vida de Borges, Kodama ajudou o escritor principalmente quando a visão já não lhe era tão boa e a cegueira o acometia. Após se casar, além de ser a herdeira intelectual, Kodama se transformou numa ferrenha defensora da obra do autor de "Aleph". Hoje, preside o Instituto que leva o nome do ex-companheiro.

"BORGES ERA SENSÍVEL E TÍMIDO, MAS NÃO DEIXAVA DE SER COMUNICATIVO. DIZIA QUE SEM LIVROS, NÃO PODERIA IMAGINAR A PRÓPRIA VIDA", RECORDA KODAMA

Logo após a morte de Borges, ela se deparou com um poema cuja autoria era a ele atribuída. Uma observação do texto já demonstrava: não poderia ser. Durante oito anos, ela foi irredutível ao não desistir da tarefa de descobrir a verdadeira fonte do texto literário atribuído ao marido. Ela conseguiu desvendar a autoria real do texto. "O poema, que se chamava Instantes ou Momentos, era um disparate atômico. Era um absurdo atribuir a Borges aqueles versos. Era diferente da forma como escrevia", relata.

Apesar do jeito aparentemente tímido, Kodama demonstrou na UCS saber ser indômita quando o assunto é o legado de Borges. Provou, não que fosse necessário, que pode ser mais do que apenas a viúva de um dos maiores escritores que o mundo já conheceu.



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O texto acima está publicado na décima segunda edição da Revista UCS que já está sendo distribuída nos campi e núcleos.

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